Doença degenerativa é descoberta no RN
Síndrome de Spoan, como foi denominada por pesquisadores, atinge os moradores de Serrinha dos Pintos.
Uma doença misteriosa atinge, há cerca de 200 anos,
os moradores de Serrinha dos Pintos, no sertão do Rio Grande do Norte.
Alguns bebês nascem com os "olhos tremidos" -não conseguem fixar o olhar
em um ponto. Por volta dos sete anos, essas crianças começam a perder o
movimento das pernas. Na adolescência, a paralisia chega aos braços.
Tudo começou, segundo dizem na região, com o velho
Maximiniano, que chegara a Serrinha para casar com a filha de Pedro
Queiroz: dona Antônia. Mulherengo, contraíra sífilis. Não bastasse isso,
assim que se viu viúvo, casou com uma sobrinha de Antônia. Desde então,
a tal sífilis se instalara no sangue da família, que cresceu e virou
uma cidade onde todos são, em maior ou menor grau, parentes.
Recém-descoberta por pesquisadores do Centro de Estudos
do Genoma Humano e do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São
Paulo), a doença ganhou um nome científico: Spoan -sigla em inglês que
significa paralisia rígida, atrofia ótica e morte do tecido nervoso
periférico.
A síndrome foi descrita na edição de maio da revista "Annals of Neurology", publicação da associação americana de neurologia.
Na
região de Serrinha, foram identificados 26 casos da doença, sendo 22 na
própria cidade. Ainda não há registros em nenhum outro lugar do mundo,
embora cientistas da Holanda e da Bélgica tenham procurado os
pesquisadores para relatar outros casos.
De acordo com Mayana Zatz, coordenadora do estudo, a
síndrome é causada por um gene defeituoso, resultado de uma mutação. Por
não ser um gene dominante, ele pode ficar ao lado de um gene saudável e
passar despercebido por várias gerações. Entretanto, quando alguém
recebe tanto do pai como da mãe o gene alterado, a síndrome aparece.
Como em Serrinha o casamento entre parentes é bastante
comum, a chance de dois portadores da mutação se casarem e terem um
filho com Spoan é muito grande.
Na cidade de cerca de 4.000 habitantes, estima-se que
uma em cada nove pessoas possua o gene causador da síndrome. Com a
pesquisa, já é possível identificar os portadores. "A idéia é voltar à
cidade, ver quem quer fazer o teste e avisar os casais que podem ter
filhos com a doença", afirma Zatz.
A síndrome ainda não tem cura. Encarregada de encontrar o
local exato do gene, a bióloga Lúcia Inês Macedo Souza afirma que ainda
é preciso descobrir de que modo essa alteração genética leva à morte do
nervo motor, que, por sua vez, gera a paralisia. O estudo é financiado
pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
Origem
Acusado
como o causador da doença, o fato é que o velho Maximiniano pouco tem a
ver com a história. Por meio de uma árvore genealógica, que registra a
incidência da doença em cada núcleo familiar da cidade, a bióloga
Silvana Santos constatou que o problema começou no casamento de Pedro
Queiroz e Maria Alexandrina, pais da mulher de Maximiniano e,
provavelmente, descendentes de holandeses. O casal teve três filhos, que
tinham o gene defeituoso. Quando seus netos e bisnetos começaram a
casar entre si, a doença apareceu.
A influência da provável sífilis de Maximiniano?
Nenhuma. "Entre os séculos 16 e 19, havia a idéia de que a sífilis
estava ligada a males hereditários", conta Silvana.
Cidade tem 26% da população com deficiência
Serrinha
dos Pintos está entre as 50 cidades brasileiras com maior proporção de
deficientes físicos entre seus habitantes, de acordo com o estudo
Retratos da Deficiência no Brasil -primeira publicação a reunir
informações de vários setores relacionadas aos portadores de
deficiência. A pesquisa foi elaborada pela Fundação Getúlio Vargas a
partir de dados do Censo 2000, realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística).
O estudo divide os municípios em dois rankings: o de
"pessoas com deficiência", categoria na qual é incluído quem possui
alguma dificuldade de visão ou audição, por exemplo, e o de "pessoas
perceptoras de incapacidade", restrito àqueles que se declaram
totalmente incapazes de andar, enxergar ou ouvir, por exemplo.
Em ambos, Serrinha dos Pintos possui índices muito acima
dos encontrados no resto do país. A cidade está em 13º lugar na lista
de cidades com maior proporção de deficientes -29,23% da população
possui alguma deficiência. Isso significa que, entre seus 4.295
moradores, havia 1.255 com algum tipo de deficiência em 2000.
O índice é quase o dobro da média nacional, de 14,5% -o que representava 24,6 milhões de pessoas no último censo.
Cenário estadual
No
segundo ranking, que aborda os casos mais graves, Serrinha dos Pintos
está na 19ª posição: 5,79% da população (cerca de 250 pessoas) se diz
portadora de alguma deficiência física ou mental que a torna incapaz. O
índice nacional é de 2,51%.
Ainda de acordo com o trabalho, o Rio Grande do Norte,
onde Serrinha dos Pintos está localizada, é o segundo Estado com a maior
proporção de deficientes físicos. Lá, esse índice é de 17,64%.
Na Paraíba, primeiro lugar no ranking estadual, 18,76%
dos habitantes tem alguma deficiência. São Paulo aparece na última
posição, com 11,35% da população.
Moradores se unem
A
descoberta da síndrome de Spoan levou à mobilização dos moradores de
Serrinha. Há cerca de 15 meses, eles criaram uma associação para
defender os interesses dos deficientes físicos; hoje, a entidade conta
com 150 sócios.
A primeira conquista foi, por meio de doações, a
aquisição de seis cadeiras para banho. Um dos objetivos, agora, é
conseguir cadeiras de rodas -pelo menos 35 pessoas precisam
imediatamente do equipamento, segundo Elenara Maria de Queiroz Moura,
35, mãe de uma menina que tem a síndrome e integra a associação.
Na falta de cadeiras adequadas, muitas famílias
improvisam, anexando rodinhas a cadeiras de varanda. Muitos, porém,
passam parte do dia encostados em um canto da casa, conta a pesquisadora
Silvana Santos. A posição incorreta acarreta problemas de postura e
deformações físicas.
Outro problema sério enfrentado pelos moradores é a
falta de assistência médica. A cidade conta apenas com uma unidade de
saúde, que só funciona parcialmente.
Quando percebeu que a filha não estava se desenvolvendo
normalmente, Elenara, que é casada com um primo, começou uma
peregrinação pela região. "Ela tinha sete meses e ainda não sentava
sozinha, levei a uma fisioterapeuta da cidade vizinha, ela me encaminhou
para um neurologista em outra cidade, que mandou fazer uma tomografia,
mas ninguém conhecia a doença", conta.
"Temos um município pequeno e condições muito precárias.
Hospital só em Martins, uma cidade vizinha", conta a assistente social
Danielli Queiroz, 23, da Secretaria Municipal de Assistência Social.
Bióloga chegou à doença por meio de vizinha
Ao se mudar para o Parque Ipê, na zona oeste de São
Paulo, a bióloga Silvana Santos entrava, sem saber, em um reduto
potiguar. Em busca de melhores condições de vida, moradores de Serrinha
dos Pintos migraram para a capital paulista e fizeram do local uma
pequena continuação de sua terra natal.
Foi entre eles que Silvana conheceu Zilândia Queiroz -a
amizade entre ambas deu origem a toda a pesquisa que levou à descoberta
da síndrome.
Em uma cadeira de rodas, com "olhar tremido" e fala um
pouco lenta, a jovem, com 28 anos, conta que em sua cidade era comum
encontrar pessoas com esses sintomas. "Minha mãe fala que, quando eu
tinha um ano, caía muito. Com sete, comecei a parar de andar", lembra. O
primeiro diagnóstico apontou paralisia cerebral, hipótese depois
descartada.
Levada à AACD (Associação de Assistência à Criança
Deficiente), caminhou com andador até os 12 anos. Mas, quando a mãe
engravidou novamente, a fisioterapia foi interrompida. "Íamos para a
AACD de ônibus, eu no colo dela. Com a gravidez, não dava mais."
Com o tempo, a escoliose se acentuou, levando Zilândia a
pender o corpo para o lado esquerdo e a cabeça para baixo. Os braços
começaram a perder as forças. As mãos tendem a fechar e os pés, a se
apoiarem apenas sobre os dedos.
Em 2001, Silvana decidiu conhecer Serrinha dos Pintos
com a família. Voltou com a sensação de que algo novo acontecia na
região. (AL)